Cinemas Periféricos da América Latina
Você sabe dizer qual foi o último filme mexicano que assistiu no cinema ou no Netflix?
Muitos podem justificar a raridade de filmes mexicanos pela falta de produção cinematográfica desse país. Na verdade, o México possui significativa produção de filmes, mas enfrenta grandes dificuldades de distribuir as suas produções no mercado audiovisual mundial.
Na América Latina, países como Chile, Venezuela, Colômbia, Cuba, Peru, Bolívia, Uruguai, Equador e Paraguai possuem ótimos filmes, mas infelizmente pouco conhecidos pelos brasileiros, acostumados aos filmes dos EUA.
Esse cinema periférico da América Latina despertou a curiosidade do geógrafo Vanderlei Mastropaulo, que foi estudar o tema no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM / USP).
Para o Geografia Visual, Vanderlei deu uma entrevista muito interessante, oferecendo um panorama geral sobre a a produção cinematográfica periférica de países latino-americanos. Aproveitem.
GV: Qual é a periferia do cinema na América Latina?
Vanderlei: Para ser justo, quero informar que tomei de empréstimo a expressão “cinema periférico” do livro Cines periféricos, do historiador espanhol Alberto Elena. Ele e outros pesquisadores costumam se referir a todo o cinema da América Latina como periférico, ao levarem em consideração a dificuldade de certos países em fazerem frente ao predomínio dos filmes dos EUA no mercado audiovisual mundial.
Além do domínio de mercado, é comum notar que a maior parte dos livros sobre história do cinema concentra a narrativa nos EUA e em alguns países europeus, sobretudo França, Alemanha e Itália. Outros países e continentes são quase apêndices, tendo como justificativa a “pouca” produção, o que é discutível, pois México e Índia, por exemplo, caracterizam-se por cinematografias bastante pujantes.
Na América Latina, há predomínio histórico de México, Argentina e Brasil, cujo volume de produção corresponde a cerca de 85% do continente, o que torna quase invisíveis muitos filmes importantes e instigantes de outros países latino-americanos, o que é, sem dúvida, uma pena.
GV: Por que a produção audiovisual desses países se mantém periféricas?
Vanderlei: Há um histórico domínio do mercado mundial pelos países mais ricos, que consolidaram suas indústrias de cinema ainda na década de 1910. França e Itália foram os principais fornecedores de filmes para a América Latina, quando produzir aqui era uma escolha de autodidatas entusiastas. Com os abalos provocados na Europa pela Primeira Guerra Mundial, abriu-se espaço para a ocupação dos mercados mundiais pelos EUA, situação que se mantém até hoje. Parte considerável da rentabilidade do cinema dos EUA é recuperada nos mercados estrangeiros. Funciona como uma lógica geopolítica, pois são grandes investimentos financeiros no ramo de entretenimento, que precisam alcançar o maior público possível.
Os primeiros estúdios da América Latina se firmam apenas na década de 1930, com bastante atraso e ainda dependentes de tecnologia estrangeira. Nesse período, o mercado de exibição já estava configurado para as necessidades dos estúdios dos EUA, pois o parque exibidor prioriza quase sempre o produto de retorno supostamente garantido. Essa lógica se mantém até hoje e gera uma situação irônica, pois os cinemas nacionais são os “estrangeiros” em seus próprios territórios, visto que o público considera quase natural ir ao cinema para ver um filme falado em inglês.
E o predomínio dos EUA vai além das salas de cinema, pois se reproduz em outras janelas, como os canais de TV aberta e a cabo, o quase extinto mercado de vídeo doméstico (DVDs, blu-ray) e os crescentes serviços de VOD (video on demand, de transmissão em streaming por internet).
GV: Você pode recomendar algum filme que possa ser utilizado no contexto do ensino de geografia?
Vanderlei: Sim, sempre há recomendações, pois o audiovisual tem um potencial enorme para ser trabalhado como instrumento de ensino. Para ficar apenas em alguns exemplos, gosto de recomendar Histórias mínimas e Filha distante, ambos do argentino Carlos Sorín, cujas histórias se desenvolvem na imensidão da Patagônia argentina.
Dois filmes de Walter Salles, Central do Brasil e Diários de motocicleta, contêm uma gama tão vasta de paisagens e de personagens de diversos lugares, que também podem render boas discussões. Por serem road movies, permitem que o espectador viaje por lugares completamente distintos. No primeiro, uma viagem pelo Brasil, e, no segundo, uma viagem pela América Latina e sua infinidade de mundos.
Gosto muito do chileno Machuca, cujo enredo se desdobra em torno da amizade de dois garotos de classes sociais diferentes, que habitam locais muito diferentes. O mais rico, o centro de Santiago. O mais pobre, uma favela no pé da Cordilheira dos Andes. O contraste social e geográfico exposto no filme rende boas discussões.
E dois filmes mais recentes chamaram a minha atenção pelo uso sufocante e opressor dos espaços urbanos. São o argentino Elefante branco e o venezuelano Pelo malo, que também recomendo bastante não só pelo inteligente uso dos espaços na construção narrativa, mas também por tocarem em temas pertinentes ao momento atual, como a violência vinculada ao uso de drogas e a intolerância.
Haveria outras recomendações, mas alguns ótimos filmes ficam restritos à circulação em festivais e, infelizmente, não chegam ao nosso circuito comercial.
GV: Quais são os tópicos que você aborda no seu curso?
Vanderlei: O curso aborda o panorama de países com menor volume de produção, mas com filmes muito instigantes. Priorizei Chile, Venezuela, Colômbia, Cuba, Peru, Bolívia, Uruguai, Equador e Paraguai. Começo no período silencioso, dos primeiros registros e primeiros filmes de ficção. Passo pela difícil transição ao cinema sonoro, as tentativas de formação de um cinema industrial em alguns países, a modernização de linguagem (no documentário e na ficção) nas décadas de 1950 e 1960, as crises políticas (causadas pelas ditaduras militares) e econômicas, nas décadas de 1980 e 1990. E chego ao momento atual, em que ainda lutamos para conquistar mais público e visibilidade.